Não diferente de todos os dias, dei de levar minha canina para sair um pouco e demarcar territórios alheios com suas necessidades. Com o dever cumprido, voltamos ao nosso prédio, mas reparei que em frente à portaria havia uma senhora; na verdade parecia que o crucifixo enorme em seu pescoço é que tinha a senhora. Com olhos grandes piscando por detrás de um óculos de grau altíssimo, ela fitava um pobre diabo que tentava passar pelos portões da entrada do nosso prédio. Portões no plural, pois antes de continuar, preciso informar a você que lê que o nosso prédio foi equipado recentemente com novas tecnologias, sim, reconhecimento facial, fechamento automático, a coisa smart toda, pois agora estamos orgulhosamente alinhados com George Orwell, e, para adentrar o prédio, agora é preciso mostrar sua fuça para uma câmera reconhecê-la e só então ter sua entrada liberada. Mas porém, sempre existe um porém não é, uma vez adentro, o processo é repetido: existe uma segunda porta e uma segunda tela, bem similar a um presídio de segurança máxima. Voltemos ao sujeito, pobre desavisado, que passou pela primeira porta, mas levou azar de travar na segunda, pois aconteceu algum chabú que, apesar da tela verde escrito “acesso liberado”, fez a porta travar e deixá-lo no limbo entre os dois portões, como um pedaço de cupim que fica entre um canino e o primeiro pré-molar. E o Cristo, crucificado, ao meu lado, observando tudo, morrendo por nós, até que dois, três minutos depois, o sujeito finalmente passa pelos dois portões do purgatório, mas não sem maldizer as novas tecnologias, porta de merda, diz, e então entramos, o Cristo, a senhora, a cachorra e eu. Passamos pela primeira porta, que reconhece meu rosto, Cristo está comigo, pensei, e passo pela segunda porta tranquilamente também até perceber que passamos apenas a canina e eu, pois a pequena senhora parou no limbo, parou porque quis, para agora bater na porta da portaria com uma mão pesada como a de Deus. “Vocês acham que a gente é idiota?”, o porteiro respondeu “Sobre o que?”, ao abrir a porta, não entendendo que aqueles grandes olhos estavam determinados a crucificar mais alguns cristos naquele dia, prego por prego. A coisa ficou feia e segui meu caminho, escutando coisas como “O condomínio só gasta dinheiro com porcaria que não funciona pra gente pagar”, “a gente chega do serviço cansado”, “vocês são pagos para o que então?”. E enquanto isso, Cristo e o porteiro perguntam a Deus em pensamento “Pai, porque me abandonaste?”.
Crucifixo
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